O Controle de Megadrive




   Hoje quando voltava da UFPB, uma criança entrou no ônibus, baixou a cabeça e ficou parada, no meio do corredor, sem dizer uma só palavra. Ficou ali por um longo momento, despertando a curiosidade de todos e a preocupação em vários. Estava bem ao meu lado, imóvel, e por um momento eu pensei “esse pirralho vai fazer uma besteira”.


   Quando algumas pessoas já tiravam os celulares do bolso pra esconder no cós da calça, o menino começou a contar: 9... 8... 7... 6... 5... 4... 3... 2... 1.

   Terminada a contagem, levantou a cabeça como se fosse um boneco e começou a anunciar com voz anasalada que estava vendendo balas de menta para ajudar sua mãe que estava doente, internada no hospital do câncer. Muitas pessoas não entenderam aquele número apresentado, aquela imitação de robô. Mas eu me vi rindo para o menino, porque compreendia perfeitamente o que ele estava fazendo.

   Quando minha vovó Eurides faleceu, lá no começo de 1994, existia uma banca de revistas bem pertinho da casa dela lá no Bairro dos Estados. Era uma banca pequena, mas bem sortida, e eu adorava pedir uns trocados a ela ou a mainha pra fazer uma feirinha de revistas lá... 

   Nas vésperas da missa de sétimo dia de seu falecimento, fui pra João Pessoa com mainha e fiquei, como sempre, na casa de vovó. Nem preciso dizer que foi uma sensação totalmente estranha entrar por aquele jardim e não ser recebido pelo seu abraço. Entrar naquela cozinha e não ver um copo de leite morno com toddy e um pacote de suspiro me esperando. Faltava alguma coisa. Faltava o cheiro de acqua fresca. Faltava tudo.

   Percebendo minha tristeza, mainha de meu alguns trocados para eu fazer minha costumeira feirinha na banca de revistas. Fui lá com Janine, chafurdei um pedaço pela papelada e comprei quatro revistas: Uma do Homem-Aranha, uma do Condorito, um almanaque de bolso do Recruta Zero e uma revista sobre videogames.

   Essa última ficou na minha memória por um motivo especial: eu nunca tive um videogame. Na verdade, ganhei um inesquecível Dactar quando tinha 6 anos e foi o auge de minhas posses tecnológicas durante anos, até que Breno quebrou de tanto apertar “select” numa tarde quando passava as férias em Catolé.

   Catolé ainda não tinha as famosas “locadoras de videogame”, onde você paga alguns centavos para jogar meia hora nos videogames instalados lá mesmo. As locadores só chegariam dois ou três anos mais tarde, com a chegada do revolucionário PlayStation 1. Minha única experiência com videogames, portanto, era a de assistir Edmundo Júnior eMichel jogando Mortal Kombat 1 no Mega Drive deles, o qual eu recusava jogar quando eles me ofereciam porque tinha vergonha de fazer besteira. 

   Ficava só assistindo eles jogarem e me fascinavam os gráficos extremamente realistas para a época e o incrível leque de SETE personagens que o jogo apresentava. Ficava tenso quando o jogo começava e eles tinham que apertar os botões na exata sequência A+B+A+C+A+B+B bem ligeiro pra ativar a opção de SANGUE nas lutas. Me inclinava pra frente na hora dos fatalities, que eram os golpes finais de cada lutador, torcendo pra eles acertarem a sequência de comandos e fazer com que a tela escurecesse e Kano arrancasse o coração do oponente com a própria mão (pois é). Confesso que eu tinha muita vontade de jogar. Mas por medo de passar vergonha, optava por só assistir. E, mesmo assim, adorava.

   Por isso era meio engraçado comprar a revista sobre videogames na banca perto da casa de vovó. Eu não jogava. Nunca. Mas fiquei hipnotizado pela capa que trazia um Scorpion sem máscara por trás de um letreiro chamativo que dizia “TODOS OS SEGREDOS PARA VOCÊ DEBULHAR NO MORTAL KOMBAT!!”, logo acima de um menor que dizia “FATALITIES, PODERES E GOLPES ESPECIAIS”.

   Aquilo já era suficiente pra ganhar minha atenção, mas o que não me fez sequer pensar duas vezes antes de botar a revista debaixo do braço era um adesivo colado no plástico que cobria a revista e dizia em letras garrafais: “BRINDE: UM CHAVEIRO RÉPLICA DO CONTROLE DO MEGA DRIVE”.
  
   Sim, amigos. Junto com a revista vinha “grátis” um pequeno chaveiro que simulava um controle (na época ninguém chamava de joystick) de Mega Drive. Era uma réplica em miniatura, umas seis vezes menor que um controle de verdade, feito de plástico duro e cujos botões não se mexiam nem nada. Ou seja, era um chaveiro. E eu sabia disso. Mas pra mim, já era alguma coisa.

   Cheguei na casa de vovó e a primeira coisa que eu fiz foi rasgar o plástico protetor da revista que prometia me ensinar a debulhar no Mortal Kombat que eu não tinha e pegar o chaveirinho de controle. Era minúsculo. Mas eu acabava de ter em mãos um passaporte para usar e abusar da minha imaginação.





   Lembro de ter ido para a missa de sétimo dia do falecimento de vovó com o chaveirinho na mão. A cordinha laçada no dedo indicador, o controle completamente aconchegado na minha pequena mão direita. Lembro também que a missa doía. Era terrível aceitar que nunca mais ia ver minha vó. Lembro que eu só queria gritar, ou chorar, ou chacoalhar todo mundo pelas golas das camisas perguntando o por quê de vovó ter ido embora pro céu sem se despedir de mim. Na maior parte da missa, eu só queria sumir. E graças àquele pequeno controle de videogame de mentira, eu consegui arrumar um abrigo seguro dentro de minha cabeça, e me esconder daquela tão doída realidade, simplesmente imaginando que jogava Mortal Kombat ali mesmo, no meio das senhorinhas rezadeiras. 


   Imaginei torneios, imaginei histórias absurdas, lutas acirradíssimas. Reiniciava o jogo mentalmente só pra repetir a combinação dos botões A+B+A+C+A+B+B trilhões de vezes, acertando todas. Imaginei zerando o jogo com Liu Kang, meu personagem preferido porque parecia com Bruce Lee. Imaginava Junior e Michel assistindo eu jogar, papéis inversos agora, e eles ficavam muito impressionados com o quanto eu jogava bem... “E você dizendo que não sabia jogar, rapaz” diziam eles sorridentes na minha cabeça.



   No final da missa cantaram “Um Coração para Amar” e “A Barca” e então eu parei de jogar meu videogame imaginário por um momento e chorei. Chorei muito. Chorei tudo que eu ainda não tinha chorado desde que fui chamado no meio da quarta aula para receber a notícia de que Vovó tinha partido. Acho que inconscientemente, eu sabia que precisava enfrentar aquela perda e por pra fora minha angústia em algum momento. Saí da missa com um vazio enorme no peito e uma tristeza difícil de explicar, sobretudo quando você é apenas uma criança. Mas saí inexplicavelmente confortado por aquele pequeno chaveiro-controle que balançava na minha mão, e por ele ter me ajudado a sobreviver quase intacto a uma experiência tão dolorosa. 



   Por isso hoje, duas décadas depois, eu compreendi o que aquele menino estava fazendo ao imitar um robô no meio de um corredor de um busão semi-lotado em João Pessoa. Ele estava brincando. Brincando de imaginar, de fugir do que lhe dói, de encontrar uma distração divertida para atravessar o mar revolto que marulha violento à sua frente. Estava usando o que tinha ao seu alcance para se ver num mundo diferente onde o que ele faz não é por necessidade e sim por diversão. Ali, ele não era um menino pobre vendendo balas pra ajudar sua mãe doente. Ele era um robô engraçado, programado pra vender balas de menta. Da mesma forma que, uma vida atrás, eu não era um neto arrasado chorando na missa da falecida avó. Era um menino feliz, jogando videogame com os amigos em casa. Esse é o maravilhoso poder da mente infantil.



   É isso que torna as crianças especiais. Essa é a grande vantagem que elas têm sobre nós, meros adultos estúpidos e idiotas. Elas conseguem encontrar uma forma de fugir desse mundo injusto, escondendo-se, vejam só, dentro de si mesmas. Essa é uma característica genial, um poder incrível que, infelizmente, a gente costuma perder a medida que vai crescendo. Hoje, eu pude testemunhar com satisfação um momento mágico. Testemunhei o dia em que, enquanto dezenas de adultos lamentavam a desgraça daquele menino que vendia balas, o menino que vendia balas virava um robôzinho pra não ter que se lamentar pra ninguém. E isso me fez pensar... Como é bom, e ao mesmo tempo como é difícil ser criança...



   Talvez seja por isso que curto videogames até hoje. Acho que é por causa da fuga da realidade, a oportunidade de desligar-se do mundo que eles te proporcionam todos os dias, coisa que é difícil de fazer sozinho quando você já não é mais criança. Tenho um carinho todo especial pelo violentíssimo Mortal Kombat, mesmo que hoje eu quase sempre dê preferência aos games de futebol. Gosto demais do Xbox, adoro o PlayStation 2, coloco o Super Nintendo no céu e amo de paixão o bom e velho Atari e seus pontinhos quadrados. 



   Mas o Mega Drive... Ah, meu amigos... O Mega Drive foi um amigo especial. Um parceiro que nunca tive, e que mesmo assim, cumpriu sua função através de um chaveirinho inútil, segurando minha mão na hora certa e me levando para um lugar seguro quando a dor era insuportável demais para uma criança de 10 anos. Me fazendo acreditar que, se a gente quiser, sempre há um mundo bem melhor pra se viver e provando assim, por A mais B, ou mais precisamente por A+B+A+C+A+B+B, que a imaginação de uma criança ainda é o abrigo mais inviolável para a ameaça constante de viver nesse mundo tão real.



   Por isso que eu nunca esqueço de ser um pouco criança. Por isso, volta e meia eu me entrego à minha imaginação. Apenas fecho os olhos e me deixo carregar... Pois ela, muito mais que eu mesmo, sempre sabe onde me levar.

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