Ao Meu Velho Chica Mendes - A Bola



   Ninguém estava seguro. Vivíamos sobre constante ameaça. Não importava se você era menino, menina, professor ou cantineiro. Todos que faziam parte da hora do recreio no Francisca Mendes eram vítimas em potencial do famigerado “Espalha Móia”. 

   Durante o recreio a quadra do colégio era território exclusivo dos alunos mais velhos, da 8ª pra cima, e isso era incontestável. Fazia parte da hierarquia estudantil e ponto final. O restante dos alunos ficava espalhado pelo resto do gigantesco pátio do Francisca Mendes, um paraíso pra qualquer criança. Contudo, nos degraus que serviam de arquibancada ao redor da quadra, sempre se formavam grupinhos de alunos que sentavam ali pra merendar, conversar sobre os Cavaleiros do Zodíaco ou simplesmente para assistir os mais velhos jogarem futebol.

   O problema surgia quando o sino tocava anunciando o fim do recreio. Isso porque aquele badalar anunciava também que chegava a hora do temido “Espalha Móia”. De acordo com a tradição, quando o sino tocasse anunciando o final da hora da merenda, o aluno da quadra que estivesse com a bola nos pés, tinha automaticamente o direito de chutar a pelota com toda a força que tinha (o clássico “bicudo”) na direção dos grupinhos que se encontravam nas arquibancadas. Óbvio que o risco da bolada iminente fazia com que as crianças aterrorizadas se debandassem, espalhando a moía que ali se formara. Daí veio o infame título da ameaça. Eu já fui vítima do Espalha Móia. Tomei a redonda no meio da cara. Até hoje posso escutar o estalado fino da bola de borracha na minha lata. Fiquei com o rosto formigando até a quinta aula. Mas asseguro que a vergonha de ter sido o atingido dói mais que a bolada em si.

   Nossa infância no colégio tinha um sobrenome: Bola. Futebol era nossa segunda religião, e toda oportunidade que a gente tinha de chutar alguma coisa pra dentro de algum canto pra gente era melhor do que qualquer outra recreação que pudesse ser aplicada numa escola. E, como naquela época ser criança não era assim tão fácil, um dos principais desafios era jogar bola... sem bola.


   As pedras do terreiro até quebravam o galho, mas também quebravam unhas, dedos e deixavam imensos nós nas canelas. Foi o jeito então inovar com a tampa de refrigerante. Não machucava, não trazia riscos aos “atletas”, parecia a bola perfeita pra se jogar bola sem bola. Mas logo descobrimos que tampas de refrigerante tinham trajetória irregular, era difícil de ver na correria e quando alguém pisava naquela porra e arrastava no chão, era uma crise de gastura e “arrupios” nos coleguinhas que até hoje quando lembro me dão coisas. Veio então o modelo melhorado de bola improvisada, a mais alta tecnologia foi implantada com o advento da adorada Manga Verde. Redondinha, vários tamanhos e macia na medida. Sem falar que em cada extremidade da quadra tinha um “Pé de Bola” pra gente colher sempre que uma se perdesse. Mas era importantíssimo que a manga fosse verde. Sério. Tinha que ser verde. Pois era terrivelmente difícil lavar sua calça no bebedouro pra tirar toda a papa amarela de manga madura estourada canela acima. 


   Foi com a Manga Verde Termotex Max-99 que jogamos um dos mais emocionantes campeonatos de banco-a-banco da história das aulas livres. No corredor logo ao lado do bebedouro, tinha dois bancos vermelhos, perfeitamente alinhados um de frente pro outro. Em nossas cabeças desocupadas, duas traves perfeitas e um mini-campo na sombra bem ao lado da água fresca. Um futebol de se jogar sentado na própria trave, tentando fazer gol na trave da frente. Parece idiota? Pois foi uma das brincadeiras mais legais que já brinquei na minha vida. Quem não acredita, experimentem uma partidinha. Os bancos ainda estão lá. O bebedouro também.



   Às vezes aparecia uma bola de verdade. Às vezes, dávamos um jeitinho de providenciar para que essa bola aparecesse. 


   Durante as aulas de educação física, por exemplo, o professor Roberto ostentava um saco de bolas de futsal, que tratava como se fossem filhas. Uma delas era uma “fraldinha” que tinha o nome de Biu, patrocinador da pelota, impresso em um dos gomos. Uma “fraldinha” era praticamente uma bola de tênis feita pra se jogar futebol. Era pequenininha e maneira, mas era gostosa demais de se jogar justamente por isso. Num desses treinos da educação física, alguém chutou uma fraldinha pra longe do gol, e ela ficou presa entre os galhos da mangueira. Com o entrosamento e cumplicidade que só colegas de escola têm, todos concordamos apenas com a troca de olhares furtivos que ninguém iria avisar a Roberto que uma bola tinha ficado presa ali em cima. A aula acabou, o professor foi pra casa, nós partimos ao resgate e durante 3 dias, tivemos uma bola fraldinha de Biu só nossa, pra jogar trave mirim na quadra coberta pra todo o sempre, ou até Roberto sentir falta de uma de suas meninas. 

   Outra opção era pedir a bola do colégio. A bola do colégio era o artefato dos deuses. Ficava guardada na sala dos professores, no saleta da impressora, dentro de um cesto de lixo daqueles de madeirite. Era uma bola linda de 5 reais, uma “Canarinha dente-de-leite”, murcha na medida certa pra não quicar demais nem de menos. Era o peso ideal, a cor ideal e a zuada mais linda do mundo quando tomava um chute forte ou quando batia na parede do Salão Pax. Foi com uma dente-de-leite que eu tomei meu “Espalha Móia” na fuça. Nem por isso deixei de amá-la.


   Só que pra jogar com a bola do colégio, você não podia simplesmente chegar lá e pegar a redonda. Tinha que falar com Gorete, a guardiã da bola. E esse era o problema. A liberação da bola dependia do bom comportamento dos solicitantes. O que significava que bola pra gente, necas. Mas como o verme da bola fala mais alto que a vergonha na cara, a gente perdia ali uns cinco minutos de “zerinho ou um” pra decidir que ia levar o “não” da vez. Vez por outra, Gorete tava de bom humor, e quando o “condenado” saia da sala dos professores com um sorriso incrédulo na cara, segurando a vontade de correr feito um louco e segurando a tão desejada dente-de-leite nas mãos... Aquilo não tinha preço.


   A última e mais desafiadora de todas as providências, era fazer uma vaquinha e comprar a própria bola. Depois de receber autorização das irmãs para tanto, começava a difícil matemática pra dividir os centavos que cada um teria que arrumar pra pagar sua parte. Depois de semanas de economia, vários recreios sem lanchar e inúmeras cobranças aos velhacos, ali estava a pilha de moedas que nos daria uma bola nova. Lembro que a nossa quem foi o enviado ao comércio foi Parmênedes, vulgo Monstriacos, porque ele tinha um motorzinho em algum lugar que o tornava capaz de ir lá no Lunik e voltar pro colégio em menos de 2 minutos.

   Quando Monstriacos entrou pela portaria, com a dente-de-leite zerada, dentro dum saquinho transparente com um jogadorzim de uniforme da seleção desenhado, batendo a gorduchinha no chão e ela estalando no linóleo, aquilo foi o nirvana da vida. Parecíamos que tínhamos comprado nosso primeiro carro.


   A festa acabou 5 minutos depois quando Hugo foi dar o tradicional “Balão pra Cima” na entrada na quadra e a nossa tão desejada aquisição foi parar nas calhas do telhado do Salão Pax. Hugo passa bem e hoje está casado e tem um filho. Mas quase... quase ele não escapa...


   Hoje tenho a minha própria dente-de-leite, guardada com carinho debaixo da minha cama. Minha sobrinha de 1 ano e meio parece compreender o seu valor, pois já prefere a minha murchinha à vermelhona da Galinha Pintadinha dela.


   De vez em quando me pego batendo ela na parede (a bola, pessoal) só pra ouvir o estalado nostálgico da minha infância. Às vezes vou até a cozinha beber água e levo a pelota nos pés, driblando as cadeiras da sala como se fossem meus colegas do colégio. Mas logo perde a graça. A bola é minha, posso jogar com ela quando quiser e não preciso pedir ela pra ninguém. E isso é chato. Terrivelmente chato. 


   Ainda amo futebol. Na verdade, sou doente por esse esporte. E sei que um dos grandes culpados desse meu amor tão louco foram os dias felizes que passei sendo futebolista no colégio. É mais uma coisa boa da vida que devo gratidão a essa minha eterna casa de felicidade. Pois é lá que ainda nascem as melhores mangas verdes. É lá que ainda resistem firmes e fortes as traves do banco-a-banco. É lá que ainda ecoam o estalar dos meus sorrisos de criança. 


   E sei que é lá que estarão guardadas pra sempre, as melhores lembranças de minha vida. Guardadinhas em algum lugar seguro, entre a sombra acolhedora da quadra coberta e o aconchego sagrado daquele cesto de lixo de madeirite, na saleta da impressora, lá na sala dos professores...


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