Ao Meu Velho Chica Mendes - O Cúmplice



Nos corredores do Francisca Mendes, ela era, pra mim, a personificação do “tira mau”. 

   Pra quem não conhece a expressão, vai um resumo básico: Em filme policiais dos anos 80, as duplas de policiais tinham uma estratégia de interrogatório chamada de “Tira bom e Tira Mau”. Consistia em deixar o suspeito numa sala para que dois policiais se revezassem no interrogatório. 


   O primeiro entrava e interpretava o “tira mau”. Malvado, grosseiro, impaciente e mal-encarado. Aquele cara que te fuzila só com o olhar e te apavora só de aparecer na porta. Já chegava chutando as cadeiras e metendo o dedo na cara do prisioneiro. O “tira mau”, no fim das contas, não era realmente mau. Nem queria tirar nenhuma informação do suspeito. Ele estava ali só pra assustar. Pra meter medo. Pois esse era o plano.


   Quando o “tira mau” saia, entrava o “tira bom”. O “Tira bom” pedia desculpas pelo temperamento do colega, sentava calmamente e oferecia um cigarro. Tudo combinado. Ganhava instantaneamente a simpatia do prisioneiro. Dali, eram poucos minutos até que ele conseguisse que o suspeito abrisse o bico e falasse tudo que sabe. Falava ou por confiar no “tira bom”, ou por medo de não cooperar e chamarem outra vez o “tira mau”. Essa era a essência do plano. Um assusta e obtém o medo, o outro acalma e obtém as respostas.

   E era assim que eu via Irmã Rita. Um “Tira Mau”. Aquela que botava medo e impunha respeito sempre que chegava. Aquela que chegava arregaçando com tudo pra gente ver que é muito melhor agradar o professor que enfrentar a coordenadora. Com seu olhar penetrante, seu corpo avantajado e um par de narinas que se dilatavam de forma espantosa quando ela nos dava uma bronca, Irmã Rita era uma lenda viva no Francisca Mendes.

   “Lá vem Irmã Rita” era o grito que o sentinela (aluno escolhido pra pastorar na porta da classe) dava pra avisar ao restante da turma que a porra tinha ficado séria. Era o equivalente a um “fujam para as colinas” ou um “A represa arrebentou” nos dias de hoje. Se o sentinela gritasse que lá vinha Irmã Rita, você devia parar imediatamente o que quer que estivesse fazendo, correr pra sua carteira e baixar a sua cabeça sonsamente, se você tivesse amor à vida.

   Irmã Rita era acionada quando a coisa estava fora do controle. Quando a professora não dava conta, quando a diretora já não sabia o que fazer, ou simplesmente quando o barulho era alto o suficiente para chamar sua atenção, ela subia a escadaria do colégio e até hoje eu associo a apreensão que sentia vendo a sua caminhada em direção às classes com a apreensão que sinto vendo a caminhada de Godzilla rumo à cidade de Tóquio. Tipo... Corram por suas vidas.

   Ela aparecia na porta da classe, com seu vestido xadrez e seus óculos de lentes grossas, e o silêncio que se fazia a partir dalí era tão pesado que chegava a ser barulhento. Sério. Era um silêncio ensurdecedor. Até a professora se calava. Hoje paro pra pensar e concluo que nunca em toda minha vida vi uma presença tão imponente quanto a daquela senhora.

   E então ela falava. Não falava muito. 5 ou 6 frases rápidas e trêmulas que faziam a gente se encolher na cadeira, intercaladas por minutos de silêncio, onde ela apenas encarava a gente, um por um, mexendo a cabeça como um ventilador, enquanto suas narinas abriam e fechavam soprando ar quente nas nossas faces apavoradas. Eram aquelas encaradas que matavam. Um colega meu uma vez jurou que os olhos dela ficaram vermelhos enquanto ela dava uma bronca nele. É incrível lembrar disso nos dias de hoje. Era eletricidade pura que havia nas visitas surpresas daquela mulher... E aquilo me fascinava.

   Me fascinava porque eu sabia aquilo não era verdade. Ao contrário dos meus colegas, eu sabia que ela estava interpretando o “Tira Mau”. Eu sabia que aquilo era um personagem, a freira valente que botava moral no colégio inteiro. Sabia que era um personagem, porque convivia com ela nos períodos extra-classe. Mainha era professora do Francisca Mendes e todo dia eu tava por lá, nos corredores, na sala dos professores, nas reuniões da diretoria... Perdi a conta de quantas vezes eu tomei sopa as 6 da noite na mesa com todas as freiras, falando sobre meu dia, ouvindo suas histórias, ouvindo suas piadas...






   Irmã Rita era um doce. Quando tirava sua fantasia de “tira mau”, virava mais uma freirinha adorável como todas as outras. Sentava num banco perto do jardim e chupava manga comigo, me levava no pomar pra tirar cajarana, e confiava tanto em mim que me deixava até entrar sozinho na clausura, área estritamente proibida para todo mundo, pra pegar as chaves do Salão Pax pra mainha.


   E no fim das contas, eu, na minha estúpida inocência infantil, não dizia aos meus amigos que Irmã Rita era legal. Não contava sequer que jantava com ela e ria de suas histórias, porque tinha medo de ser acusado de “confraternizar com o inimigo”. Guardei então essa amizade em “segredo” por muito tempo. E acho que ela queria que fosse assim. Era importante que os alunos achassem que ela era realmente assustadora. Talvez fosse essencial ao equilíbrio e à manutenção da paz e do respeito naquele tão amado lugar, repleto de crianças hiperativas e muitas vezes rebeldes.

   Hoje, Irmã Rita não assusta. Irmã Rita não intimida. Ela apenas cativa com sua fragilidade tão injustamente aplicada pelo tempo. E nos deixa com um nó na garganta, desejando por vezes que a vida lhe desse mais uma oportunidade de gritar duramente com a gente, desde que devolvesse a ela a vitalidade que o tempo lhe tirou.

   Thiago Bruno, meu ex-colega do Francisca Mendes, me relatou certa vez um encontro que teve com Irmã Rita nos corredores do colégio num dia de eleição. Ela, numa cadeira de rodas, com a saúde debilitada, não o reconheceu quando o viu.

“Sou Thiago, filho de Valdilene, fui colega de Kakito de Dona Lenilda, de Lázaro, Alexandre...”

Um brilho surgiu em seu olhar e ela sorriu. Um sorriso de reconhecimento e nostalgia. Então, saudosa, ela falou:

   “Aaah, sei... Aquela turma danada que fez a apresentação do Japão... Vocês deram trabalho, mas foi uma das melhores turmas desse colégio...”

   E pra minha inveja, ele passou a tarde inteira ali, sentado, conversando com ela, assim como eu tantas vezes fiz na minha infância...

   Demoro a dormir as vezes pensando em minhas conversas com Irmã Rita. Procuro lembrar sobre o quê a gente falava, mas esses detalhes se perdem no cheiro de manga madura. Sei que ali nós construímos uma amizade despretensiosa, de alguém que tinha um coração gigante pra alguém que sabia da existência desse coração. Infelizmente, muita coisa que guardo na minha memória, não pode mais ser encontrada na memória dela. Até isso o tempo consegue levar. O mundo às vezes é tão injusto...

   A última bronca que tomei dela, foi na frente da classe inteira. Ela estava dando um aviso sobre não ter aula numa segunda-feira e eu, na empolgação do fim de semana prolongado e na alegria de estar vendo minha doce e inofensiva amiga, fiquei de pé ao lado da carteira sorrindo pra ela. Ela me devolveu um olhar fuzilante, as narinas se dilataram e ela falou grosso:

“Tem formiga na sua carteira? Pois se sente.”

   Sentei todo me tremendo. A garganta arranhando, os olhos lacrimejando. Fiquei encolhido na carteira bem caladinho, escutando à minha frente ela terminar de dar o aviso e às minhas costas as risadinhas de dois ou três colegas que se divertiram com o carão.

   Ela terminou o aviso e saiu da classe. Eu, ainda desconcertado, ergui um pouco a cabeça e olhei de soslaio para a janela onde ela passava. E pude ver quando ela olhou pra mim, piscou o olho e esboçou o ensaio de um pequeno sorriso por trás da cara fechada.

   Naquele momento, eu percebi que eu não era só mais um aluno entre tantos. Agora eu era especial. Pois descobri naquele momento que, embebido na mais pura sensação de cumplicidade, eu fiz parte do jogo.

Eu acabava de me tornar o “tira bom”.


   E esse momento, Irmã, foi o nosso momento. O grande momento da nossa história. E esse momento, eu te garanto... Nem o tempo vai levar de nós...

Um grande beijo do seu pequeno cúmplice.

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