E o Meu Cavalo Só Falava Inglês




   Reza a lenda que Dona Lenilda tinha olhos nas costas. Que não importava os planos mirabolantes e as estratégias cinematográficas arquitetadas pelos alunos profissionais da arte da trapaça, não adiantava. Se você tentasse colar, ela veria. 


   Eu mesmo testemunhei várias vezes ela sorrir para a classe e apontar discretamente para o aluno que colava lá no canto da sala, suado e nervoso, porém confiante, jurando que ninguém desconfiava. Vi muitas vezes ela ir propositalmente lá pra perto da carteira do trapaceiro e ficar lá parada, como quem não quer nada, só pra ver o crescente desespero do infeliz sem poder mais puxar o papelzinho que estava debaixo da carteira.

   Vi alunos entregarem a prova satisfeitos e saírem da classe triunfantes, porque Dona Lenilda não havia dado uma só palavra, o que significava que finalmente alguém havia driblado a máquina. Mas a alegria durava só até o dia de receber as notas, quando ela entregava as provas e recitava um monólogo, morrendo de rir, contando em detalhes como cada resposta foi conseguida por cada aluno fora-da-lei.

   Dona Lenilda tem olhos nas costas, meus amigos. E se você que foi aluno dela e pensa que já conseguiu colar em uma de suas provas, eu sinto te dizer, mas ela viu. Viu demais. Se ela não te acusou na época, parabéns. Isso não significa que você enganou o radar. Significa apenas que você foi um bom aluno, demonstrou esforço durante as aulas e ela resolveu te dar um desconto quando viu você colando. Mas ela viu. Pode apostar que ela viu.

   Lembro de uma vez, quando eu fazia a quinta série, e, naquela época, era difícil um garoto de 11 anos manter a concentração em plena terceira aula de uma segunda-feira. Sabe como é, né? Semana começando, a preguiça do domingo ainda reinando soberana, o recreio logo ali, a meia horinha de distância... Nessas horas o pensamento costuma voar, tentando fazer com que o tempo passe...

   Era uma aula de inglês e Dona Lenilda escrevia um exercício no quadro pra gente copiar no caderno e responder ainda na aula. Ela copiou a primeira questão e deu um tempo para que os alunos copiassem em seus respectivos cadernos. Eu, como era bom em inglês, só em inglês, muito obrigado, copiei a questão bem ligeiro e respondi na mesma hora. 

   Fiquei então de bobeira, vendo Dona Lenilda explicar a questão e tirar as dúvidas costumeiras de todo exercício. E no intervalo de tempo em que a segunda questão não era copiada e meus colegas que faziam a primeira anda gritavam “perainda” e “num apague não, prossora”, eu fiquei entediado e comecei a rabiscar, com lápis grafite, a silhueta de uma cabeça de cavalo no meu caderno, logo abaixo de onde estava meu exercício de inglês. Quando terminei, achei que ficou até mais ou menos e pensei: “Por que não dar um corpo a essa cabeça?”. Fiz o corpo, caprichei na garupa e, ao terminar, conclui que tinha ficado mais ou menos um Quarto-de-Milha muito do aprumado. Achei bonito e comecei a preencher o potranco com o grafite, riscando repetidamente até se aproximar do tom de preto que eu queria. Enquanto tingia o pelo do animal, cantarolava baixinho uma música temática pra entrar no clima. Me empolguei tanto na produção daquele desenho bobo que, por um breve momento, esqueci completamente onde estava.





   Parei de pintar meu cavalo quando tive a nítida sensação que faltava alguma coisa nesse universo. A princípio não sabia o que era, mas a sensação de vazio absoluto me incomodava profundamente. Aos poucos, percebi que o que faltava era algo tão comum e constante como oxigênio na minha sala: zuada. Não havia som. Não se escutava um pio de ninguém, nem barulho de carteira arrastando, nem de professora falando, e acho eu que até o trânsito na rua lá fora parou para deixar o mundo no mais absoluto silêncio naquele momento.


   Levantei a cabeça já repetindo mentalmente o mantra “quevê a merda” e, assim como eu já tão tristemente esperava, ela estava lá. Dona Lenilda, a professora dos olhos nas costas estava em pé, ao lado da minha carteira, assistindo interessadíssima a minha reprodução artística de um alazão cor de grafite. Eu nunca imaginei que ela ia perceber que eu tava desenhando discretamente no meu cantinho. Mas ela percebeu. O radar ninja psicopata havia feito mais uma vítima. 

   Olhei em volta e a expressão de “foi bom te conhecer” e “sentiremos sua falta” nos olhos dos meus colegas me fez entender que aquele era provavelmente meu último dia de vida letiva na galáxia em que habitávamos. Porque você ser pego desenhando durante a aula pela professora já é encrenca. Mas ser pego desenhando pela sua professora e por sua mãe ao mesmo tempo, é um combo devastador que elimina qualquer possibilidade de sobrevivência neste planeta pelas próximas 16 encarnações.

   Fechei os olhos e esperei o lápis tinta na jugular, o puxarranco de orelha em sentido anti-horário, ou pelo menos aquele tabefe no cangote que estala bem alto e faz quem está assistindo encolher os ombros de aflição. Mas, pra minha surpresa, no lugar do tão esperado carão constrangedor de pré-adolescentes condenados, tudo que ela fez foi fazer uma pergunta:

- Já tem nome?

   Fiz que não com a cabeça e nem um sorriso amarelo eu consegui abrir de tão rápido que eu murchava. E foi quando apanhei a borracha mercur e coloquei a banda vermelha em cima do cavalo pra apagar minha obra, que ela interveio e não me deixou fazê-lo. Apenas pôs a mão sobre a minha, tirou de cima do cavalo e disse:

- Apague não. Ficou bonito. Continue a tarefa embaixo. 

Ainda meio tremendo, guardei a borracha no estojo, pulei uma linha depois do meu cavalo e continuei o exercício, copiando a questão 2 que já estava copiada no quadro, respondida e corrigida há um bom tempo.

   Alguns alunos olharam pra mim com cara de “escapou, hein, bichão”. Outros ficaram com cara de “só porque é filho da professora, se fosse eu tava suspenso”. E alguns ficaram com a impressão de que aquele “apague não, ficou bonito, continue a tarefa embaixo” foi um código pra “quando chegar em casa você se lasca comigo, infiliz”.

   Mas no fim, não foi nada disso. Naquele dia, quando ela me impediu de sacrificar meu cavalo desenhado com tanto gosto, ela estava sendo professora mais do que nunca. Pois viu a questão 1 toda respondida logo acima e me deu um justo desconto, como já fizera várias vezes com tantos outros alunos que cometeram deslizes bem mais graves do que esboçar um pangaré cinza-escuro no caderno. Foi professora mais do que nunca quando não reprimiu minha criatividade e valorizou minha arte, ainda que tão obviamente desnecessária, inconveniente, capenga e imprecisa. E foi mãe com M maiúsculo quando perdoou meu deslize, elogiou meu desenho e me fez entender que criar é bom, não importa o momento. Seja uma história, uma música, ou um simples desenho. Criar é bom. Criar é, acima de tudo, exercitar a mente.

   Nunca mais desenhei nas aulas de inglês. Mas nunca mais deixei de lado uma boa idéia. Pois naquele dia, minha professora havia me dado, em plena terceira aula de uma segunda-feira, a primeira aula da lição mais importante da minha vida: a lição que diz que se você tem vontade de fazer algo diferente, faça. Se quer dar asas a sua imaginação, vá em frente. Não se limite apenas a o que tem de fazer. Faça mais. Faça de tudo. Faça o que te faz feliz.

   Mainha hoje é aposentada. Mas continua com olhos nas costas. Ela dá conta de tudo, sabe onde está tudo, percebe cada erro ou cada detalhe estranho que acontece ao seu redor. Incansável, divide seu tempo entre cuidar da casa, controlar um incontrolável fenômeno da natureza conhecido como o Furacão Eva e, como se isso não fosse o bastante, continua dando aula particular, pois uma vez professora, sempre professora. Enche a casa de alunos, que se recusam a ter aulas de reforço com outro mestre, afirmando que ninguém é melhor que Dona Lenilda. 

   É, meus amigos... Os anos passam, as gerações mudam, os pensamentos evoluem, mas, para minha eterna alegria, uma coisa continua imutável: Dona Lenilda continua sendo sinônimo de excelência profissional, de honestidade, integridade e caráter. E eu morro de orgulho disso.

   Hoje ela completa mais um ano de vida, e eu comemoro mais um ano de plena felicidade. Pois devo à minha tão querida professora e à minha tão amada mãe tudo que sou hoje. Tudo que já conquistei e tudo que um dia ainda irei conquistar, devo ao apoio incondicional que recebo dela diariamente. Alguém que aposta todas as fichas em mim, que me incentiva sempre a acreditar em mim mesmo, que me dá total liberdade de inventar e mergulha de cabeça em toda idéia minha, por mais maluca que seja em sua grande maioria. Alguém que me levanta quando tropeço, que me consola quando choro e que nunca me deixa apagar meus desenhos, por mais que eu pense que eles não valham a pena.

   Guardo o caderno com o cavalinho até hoje. É uma recordação de valor incalculável de uma época em que eu, ainda criança, entendi que o que está feito está feito e não deve ser apagado. Que a vida continua, assim como continuou aquele exercício de inglês. E que até seus tropeços valem a pena ser guardados, tornando-se lembranças felizes quando existe a compreensão, a cumplicidade e o amor de mãe. 

  Agradeço todos os dias aos céus pela mãe que tenho. Agradeço cada segundo de existência dessa mulher absurdamente adorável, que conquista o mundo inteiro com seu carisma, seu bom coração e sua capacidade ímpar de ser uma guerreira destemida quando todos nós somos apenas vítimas assustadas dessa vida tão complicada. 

   À minha mãe, a mulher mais espetacular de todo o universo, obrigado por tudo. Obrigado por todo o amor. Obrigado por toda a compreensão. Obrigado pela paciência, pela confiança, por nunca desistir de mim. Obrigado por todas as aulas que a senhora já me deu dentro e fora da classe. Obrigado por ter olhos nas costas, que um dia me pegaram desenhando, e que até hoje estão atentos, sempre prontos pra me proteger de qualquer ameaça. Obrigado por ser minha mãe.

Ah, e obrigado por não me deixar apagar meu cavalinho. Vou chamá-lo de Dono Lenildo.

Tá certo, eu escolho outro.

Parabéns, Mainha, 

Te Amo demais.

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