Minhas Lembranças do Japão



   Éramos apenas 14. E naquele momento, sentados no corredor do bebedouro do Francisca Mendes, nos resumíamos em 13, já que Papafigo estava em casa dormindo. Estávamos em silêncio, com uma cara de culpa sem tamanho, enquanto ouvíamos Samara, nossa professora de história, falar.

“Eu não acredito que logo vocês, logo vocês que fazem de tudo, vão ficar de fora dessa. Pra mim, é inadmissível que logo a turma mais desenrolada desse colégio não participe dessa feira.”

Samara se referia à Feira de Cultura anual do Colégio Normal Francisca Mendes, que acontecia sempre no mês de outubro. Naquele ano em especial, o tema era a Cultura pelo Mundo. Cada turma ficaria responsável por falar de um país específico e teria que realizar apresentações temáticas, transformando a própria classe num pedacinho do país em questão. Mas nós do terceiro ano, por algum motivo que eu não saberia explicar melhor a não ser confessando ser por preguiça, decidimos que não iríamos participar daquela edição. Lembro bem da gente dizer que não iríamos participar porque já era outubro, e a gente tinha que estudar para os vestibulares que já vinham dobrando a esquina. Óbvio que era uma desculpa esfarrapada, pois ninguém da minha classe jamais estudou para um vestibular. Tenho dito.

“...Porque eu fico só pensando no tanto de coisa massa que vocês fariam”, continuava Samara com seu discurso. Hoje, relembrando esse episódio, eu vejo que além de sinceridade, Samara usou uma boa dose de apelação psicológica e massageou nossos egos de forma sagaz pra nos convencer a fazer o que a gente não queria.

Sei que funcionou. E a gente decidiu que ok, se é para o bem de todos e a felicidade da nação, diga ao povo que nós participaremos da feira. O único problema é que o evento começava numa quinta de tarde. E nós já estávamos na quarta de manhã. Tínhamos então UM dia para fazer TUDO. Decidir sobre o que falaríamos a respeito do nosso país, o Glorioso Japão, bolar uma roteiro de apresentação, criar os texto a serem decorados, arrumar o figurino típico e ornamentar a sala de aula de acordo com a cultura nipônica. A carreira, obviamente, foi grande.

Graças a professora Leilana, que nos deu toda a assistência do mundo cedendo os tapetes, quadros, vasos e parte da mobília de sua casa, conseguimos o material necessário para transformar nossa classe numa legítima casinha japonesa. Decidimos que Kênia Sinara, uma colega de olhos puxados iria ser MUITO japonesa nas apresentações, que Eu e João Carlos, vulgo Japa (sim, ele era descendente de japoneses) iríamos ser os Ninjas (acredite, o ÚNICO japonês da turma ia ficar com a cara coberta) e por fim, que Papafigo, vulgo Alexandre Arnaud, iria cometer harakiri, o suicídio japonês, porque ninguém mandou ele ficar em casa dormindo.

Para nossas roupas de ninja, o Japa prontamente falou com a mãe dele, que prontamente ligou para uma amiga costureira, que prontamente ficou de confeccionar os capuzes ninjas e a parte de cima do kimono. Na manhã seguinte, faltando poucas horas para o inicio da feira, tínhamos tudo já bastante bem encaminhado e resolvemos ir todos juntos na Silverado do pai de Lázaro buscar os capuzes ninja na costureira. Dos 14 alunos do terceiro ano, 12 subiram na caçamba da camionete. Lázaro era o motorista. Papafigo, novamente, ficara em casa dormindo.

A casa da costureira era lá perto do Caíque que, na época, já era praticamente saída da cidade. Descemos eu e o Japa e fomos buscar nossa encomenda. Como já era de se esperar de dois moleques abestalhados que recebem cada um um capuz de ninja, saímos os dois da  casa da costureira, saltitantes e serelepes, com os capuzes na cabeça. Subimos na caçamba da Silverado e ficamos nos apurando de capuz preto, só com os olhos de fora. E foi nesse momento que a polícia apareceu.

Era uma viatura antiga, um Gol 93 pintado nas cores amarelo e preto, que todo mundo chamava carinhosa ou jocosamente de “O Concriz”, devido a sua semelhança com o passarinho igualmente colorido. Vi quando o policial serrou os olhos lá de dentro do Concriz como se não estivesse acreditando no que via. Porque no Brasil não tem ninjas. E as únicas pessoas que usam um capuz negro para esconde o rosto nesse país são os homens das forças especiais da polícia e os ladrões de banco. E nós com certeza não éramos  das forças especiais da polícia.

É óbvio que seria muito fácil a gente explicar a situação. Não havia motivos para aperreio, era só tirarmos os capuzes e explicar que nós éramos apenas estudantes que usaríamos aqueles adereços como parte de um figurino para uma apresentação cultural sobre o Japão. O problema é que o uso do capuz não era nossa única encrenca. Pois enquanto eu e o Japa pensávamos em como iríamos explicar o fato de estarmos no meio da rua parecendo dois assaltantes, Lázaro, de menor e sem carteira de motorista, já estava pisando fundo no acelerador imprimindo uma fuga alucinante do local.

Agora imagine uma Silverado prata, com 12 vítimas em cima, dois deles encapuzados, disparando pela pista do contorno e se embrenhando pelas ruas de Catolé a mais de 100km por hora, cantando pneus a cada curva e com uma viatura da polícia de giroflex ligado colada atrás em alta perseguição. Duas das meninas choraram. Fabíola teve um passamento. E Papafigo continuou alheio a tudo isso, porque estava em casa dormindo.

Na época, celular era um artigo de luxo. E, por sorte, Lázaro tinha uma espécie de paralelepípedo que realizava chamadas. Ele ligou para casa gritando “ABRAM O PORTÃÃÃÃO!” e o povo da casa dele, mesmo sem entender o que estava acontecendo, assim fizeram. A Silverado entrou na rua levantando uma nuvem de poeira marrom da rua que no começo dos anos 2000 ainda era de barro e fez um drift de 90 graus entrando pelo portão. Agora ele gritava “FECHEM O PORTÃÃÃO!” e o portão foi fechado. Ouvimos o Concriz passando a toda velocidade em frente a casa, a sirene ainda ligada, em busca dos meliantes fugitivos. O som foi diminuindo até que não os ouvimos mais.

Descemos todos tremendo, tomamos 26 litros de água e voltamos pro colégio a pé, ainda eletrificados pela adrenalina liberada naquele raro momento fora-da-lei. Ao chegarmos em frente ao Francisca Mendes, quando já íamos atravessando a rua, o Concriz apareceu. Ficamos todos parados com cara de jumenta, olhando a viatura passar por nós, os policiais nos olhando e balançando a cabeça positivamente como quem diz “dessa vez vocês escaparam... Da próxima eu garanto que não...”

Não houve uma próxima vez. Não houve mais perseguição, nem nossos pais foram procurados, nem nada do tipo. Eles realmente nos deram um desconto naquele dia. Porque se eles quisessem nos ferrar, teriam feito. Acho até que eles ainda estavam procurando por nós quando nos encontramos na frente do Francisca Mendes e só então perceberam que se tratava apenas de um grupo de estudantes. Talvez foi a farda do CNFM que salvou nossa pele e fez com que os policiais concluíssem que nós não éramos os delinquentes que tanto aparentamos no nosso encontro na casa da costureira. E por isso, meu Velho Xica, fica aqui mais uma vez meu obrigado por livrar nossa barra.

Quanto a feira? Ah, a feira foi um sucesso. Apresentamos com maestria e total domínio do assunto abordado. Eu e o Japa fizemos coreografias de lutas, Kênia estava uma japonesa purinha e Papafigo se matou umas 12 vezes por dia durante dois dias. Nossa apresentação foi eleita a melhor de todas e fomos homenageados com um discurso pela nossa saudosa Diretora Irene num Salão Pax lotado com todas as turmas no encerramento da feira. Foi um momento único. Em comemoração, hasteamos a bandeira do Japão no lugar da do Brasil no mastro principal do pátio do colégio usando minha mochila como contrapeso, o que quase nos rendeu uma suspensão.

Não houve nervosismo nas apresentações. Não tinha como haver. Depois de fugirmos da polícia, todos juntos, a 100km por hora, nada mais era desafiador para nós. Aquela feira de cultura, no fim das contas, acabou me ensinando mais do que simplesmente alguns fatos curiosos sobre o Japão. Me ensinou que a união realmente faz a força, pois se não fossemos um grupo tão homogêneo, tão unido, não teríamos conseguido construir toda uma apresentação campeã em apenas um dia. Me ensinou que jovens podem ser bastante irresponsáveis, que um erro bobo pode custar caro, e que tivemos muita sorte naquele episódio de GTA da vida real. Mas me ensinou sobretudo que, até os momentos mais tensos e assustadores de nossas vidas são inesquecíveis quando os vivemos com amigos de verdade. Que todo erro pode servir de aprendizado e que os momentos de loucura de nossa infância sempre serão as melhores lembranças de nossas vidas.

Guardo comigo até hoje meu capuz de ninja, meu nunchaku de cabo de vassoura e minha camisa do Japão. Guardo como um souvenir da minha infância e como uma evidência dessa minha história. História que ficará comigo, e com certeza com meus amigos, até o fim de nossas vidas. Pois até os dias de hoje, quando vejo um Concriz, lembro da antiga viatura da polícia que um dia correu atrás de nós. Até hoje, quando vejo um ninja no cinema, lembro que foi um capuz daquele que me colocou numa baita encrenca na infância.

E sempre que vejo a bandeira do Japão, lembro de minha mochila descendo e nossa bandeira subindo. No pátio principal do nosso colégio. Num dia inesquecível de aventura, medo, união, trabalho e glória. Na época mais feliz de nossas vidas. No solo sagrado da nossa Embaixada Japonesa. No universo mágico do Francisca Mendes. 


1, 2, 3... Japão!!

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