Meu Velho Chica Mendes - O Recreio



   Naquele tempo, recreio era sinônimo de suor. De cabelo molhado nas têmporas. De joelho ralado num misto de cinza com vermelho. Futebol era o prato principal, tenho certeza que até hoje é. Mas naquele tempo a gente fazia questão de toda semana inventar uma moda nova, tendo assim um leque infinito de opções de brincadeiras geniais e outras não tão saudáveis que ajudavam a tirar o juízo das irmãs franciscanas.


   Lembro bem da febre da “Tampinha Cross”. Um “autódromo” riscado com os pés na terra do pátio da cantina, e cada um arrumava sua tampinha de garrafa. Cada um tinha direito a três “pileques” na sua tampinha por rodada, e ganhava quem completasse tantas voltas primeiro. Até que alguém desse um pileque a mais, o outro reclamasse, o primeiro chutava a tampinha do colega longe e o segundo desmanchava a pista à base de pontapés. Estava encerrada a temporada de Tampinha Cross.


   Entrava a onda do frisbee. Luciano, professor de computação, tinha um frisbee e emprestou pra gente brincar numa aula livre ou gaziada de geografia. Foi um mês da mais repleta alegria atirando o disco de plástico vermelho de um pro outro durante absolutamente todos os momentos sem aula do mundo naquela época. Até que eu dei uma frisbada na cabeça de Cecilha da 5ª série de propósito, e Luciano confiscou o frisbee vermelho pra nunca mais liberar. Lázaro ainda arrumou um frisbee branco que veio numa promoção junto com uma lata de Nescau, mas a entrada de frisbees já estava terminantemente proibida no Colégio. 

   Peteca. Ricardo Franklin chegou um dia com uma peteca. Uma peteca horrível. O brinquedo mais de menininha do mundo. Mas a gente transformou aquilo num jogo de macho. Era cada paulada pra cima nessa peteca que a primeira se abriu em dois dias. Pena pra todo lado. Compramos outra. E brincamos de peteca de macho durante semanas, até que Alan Campos desmantelou o ombro de um gancho que deu na penosa, e Irmã Ana, impressionada, pediu que aposentássemos a brincadeira por tempo indeterminado.


   Então, sem ter o que fazer, passamos a matar o tempo ocioso chupando manga no parque. E com uma manga verde se criou o “Quadrado”. Aaah, a brincadeira do quadrado... Todos o pisos dos corredores do Colégio são feitos com blocos de azulejo, deixando linhas visíveis nas divisórias entre os blocos. Estas linhas deixavam o piso esquadrinhado em dezenas de pequenos quadrados e a regra era simples: No quadrado que a manga parar é o quadrado do cacete. Quem botar o pé nessa peça de azulejo, fatalmente irá levar canelada dos demais, porque sim. Porque o sentido do jogo é dar canelada nos amigos e pronto. Não conteste. 


   A coisa era lançada a níveis extremos quando o jogo era transferido dos corredores para o pátio de formar a fila, onde no lugar de azulejos, o chão era riscado em enormes quadrados de mais de metro. Ali era morte certa. Porque pra alcançar a manga, você teria que inevitavelmente entrar no quadradão de corpo inteiro. Nunca esquecerei do som das foices riscando o pé do ouvido... Aí as mangas foram proibidas. As pedras também. E o “Quadrado” foi censurado.



   Elas podiam até tirar nossos brinquedos. Mas ninguém poderia tirar nossas mãos. Surgiu então a temporada de brincadeiras psicopatas e sem futuro usando apenas as mãos que só um bando de alunos sem celular poderiam achar legal. Primeiro foi a temida “Castanha”. Lá vai a regra única: Ao sentar-se, o jogador deveria dizer em alto e bom som a palavra “Castanha”. Se não o fizesse, seus amiguinhos teriam automaticamente o direito de aplicar-lhe um amigável murro nas costas, com a força que achasse mais conveniente, de preferência entre “muito forte” e “espiribol”. O jogo não se limitava ao recreio e valia pra todos os dias, horários e situações do ano letivo. Na aula, em casa, na missa, em qualquer lugar. Foi uma das fases mais paranóicas da minha vida. Eu nunca me sentava. Nunca.



   Uma variação de “Castanha” surgiu com a inventiva e piorada “Mão do Bolso”. A regra já ta na cara: Tem que ficar com pelo menos uma mão no bolso pro resto da vida, senão... Castanha.


   Depois surgiu “Knife”, uma espécie de “Castanha” moderna, onde no lugar de uma porrada nas costas, o esquecido levava uma cutucada impiedosa nas costelas. Há relatos de amigos que ficaram com os dedos presos entre uma costela e outra do coleguinha. Todas essas modalidades não podiam ser banidas, porque eram jogadas em segredo pelos guetos obscuros do colégio.


   Tempos depois, descobrimos que a terra do pátio da cantina servia pra muito mais do que apenas sujar o tênis branco das meninas e inutilizar a coxinha dos menores. Aquela terra podia ser usada como palco das mais cruéis brincadeiras inventadas pela comunidade estudantil. Aquela terra era agora a terra dos destemidos. 



   Foi naquela terra que tênis negros da topper riscaram o traiçoeiro e infame “Garrafão”. Uma garrafa gigante desenhada no chão, onde você poderia ficar dentro com dois pés, fora só com um e onde o menor erro lhe custaria um colete ortopédico. Um jogo onde de 20 alunos, 2 brincavam e 18 diziam que obrigado, iriam ficar só olhando. Poucos ousavam saltitar pelas bordas daquela garrafa.


   As regras do Garrafão são tão simples e ao mesmo tempo tão absurdas que apenas vou resumir o jogo. Consistia em observar todos os demais jogadores e acusar o primeiro que cometesse um erro. O acusado teria então que se dirigir até “A Mancha” para se salvar, enquanto os demais participantes lhe cobriam de bufete nas costas aos gritos alegres de “Acusa!”. Grito esse que até hoje é bradado por sobreviventes sempre que vêem alguém correndo atrás de outra pessoa. 


  O Garrafão foi proibido pelas autoridades escolares quando Torim do Buxão foi acusado e, demonstrando total falta de desportividade, revidou os bufetes no “boca” que nem tava participando da acusação, só acompanhava sorridente a procissão.


   A fim de suprir a falta do Garrafão, passamos a usar a terra pra brincar de “Cuzcuz”, brincadeira em que se fazia um cuscuz de terra com um palito em cima e cada jogador tinha que tirar um pouquinho da terra sem deixar o palito cair. Quem deixar... Acusa! Enfim... Todas essas brincadeiras tinham como objetivo principal bater nos amiguinhos pra eles aprenderem a fazer as coisas direito. Era a nossa forma de aprender a ter cuidado na vida.


   Dia desses fui no colégio na hora do recreio e fiquei surpreso quando vi um monte de crianças... sentadas comendo. Não que comer seja ruim, mas na minha época a gente empurrava um sonho goela abaixo, fazia descer com um copo de guaraná sem gás e disparava o mais rápido possível pra não perder a parte melhor do recreio que eram as brincar de qualquer coisa. Não quero criticar as crianças de hoje, cada geração tem sua maneira de crescer. Minha intenção é apenas relembrar as brincadeiras do Francisca Mendes de alguns anos atrás... E não posso negar que é interessante ver que hoje as crianças parecem mais tranqüilas, mais interessadas em jogar no tablet que jogar na terra, mais preocupadas em saber se a paquerinha ta olhando do que se o colega vem cobrar sua castanha... Um mundo bem diferente do nosso.

   É meio louco ver como tanta coisa muda em tão pouco tempo. É interessante fazer essa pesagem e imaginar o que elas achariam desses jogos se alguém explicasse a elas que não existia um objetivo lógico, a não ser ter medo e se divertir. Será que elas largariam o celular pra brincar de peteca? Ou ficariam satisfeitas em subir imundas e escoriadas pra 4ª aula depois de um recreio inteiro tentando “afulibar” a boca de um Garrafão? Me pergunto quantas dessas brincadeiras doidas da minha época sobreviveram e são jogadas nos recreios de hoje. Provavelmente nenhuma... 


Pois tenho certeza de que 90% delas hoje seriam consideradas Bullying...

No meu tempo? No meu tempo era considerado apenas... infância.

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