O Doido de Pedra






   Quando eu tinha 7 anos, matei uma pessoa. Fiquei foragido por um longo tempo até que resolvi me entregar às autoridades e pagar pelo meu crime. Foi um dia terrível.


   Estávamos na Fazenda Santana. Era uma tarde quente de sexta-feira e eu tinha ido pra lá de moto com painho, que até os dias de hoje faz essa visita vespertina diariamente àquele pedaço bonito de terra. Naquele dia, meu Tio Hamlet, irmão de painho, também estava por lá, junto com seus três filhos, meus primos Luciano, Fillipe e Carol.

   Por volta das quatro horas da tarde, o sol “esfriou” e Luciano, vulgo Lu, chamou Fillipe e eu para ir até o cacimbão ver as gias. Naquela época, ver as gias nadando no fundo do cacimbão era um programasso, algo fascinante que deixava qualquer criança entretida por horas. Topei imediatamente, calcei meu chinelinho dos Trapalhões e me juntei a eles.

   O cacimbão não ficava muito longe da Casa Grande. Uns 5 minutos de caminhada, talvez, crianças levavam um pouco mais porque crianças se entretém com qualquer besteira no caminho. Paramos uma vez para cutucar um enxu de abelhas, o que acabou nos obrigando a correr na direção oposta à que nos dirigíamos, e uma outra vez para admirar um couro de cobra abandonado perto de uma pedra.

   Em determinado momento, eu tomei a dianteira na caminhada e deixei Lu e Fillipe para trás. Não muito para trás, só uma dúzia de metros, ou menos. Acho que menos. Sei que naquele cenário em questão, Fillipe achou que seria uma boa ideia apanhar um pedregulho do chão e atirá-lo em mim, não para me atingir, mas para me fazer um susto.

- Ói o fino!! – ele gritou essa frase bonita quando arremessou a pedra, que passou alguns bons centímetros à minha direita e eu dei um saltinho desengonçado de sobressalto.

   Eles riram. Eu fiquei puto. Olhei para ele e dei aquele sorrisinho de “ô besteira, teve nem graça”. Obviamente, na minha cabeça, eu já orquestrava meu plano de vingança.

   Pensei em empurrar ele no cacimbão, mas achei que seria um tanto hardcore demais. Considerei a hipótese de procurar um Mané Mago nas juremas e jogar em cima dele, mas isso poderia matá-lo, uma vez que, até hoje, Fillipe tem um medo quase maricas de gafanhotos e derivados. Resolvi então devolver na mesma moeda. Olho por olho. Quid Pro Quo.

   Diminuí a passada e deixei que meus dois priminhos sorridente me ultrapassassem na caminhada. Deixei eles irem avançando, se distanciando de mim, enquanto eu corria os olhos pelo chão em busca do que viria a ser minha munição. 

   Apanhei a pedra que considerei ser a merecida por Fillipe. Cara, aquilo não era uma pedra. Era um lajeiro. Um aerólito. Quase um continente. Era um seixo grande, uma daquelas pedras lisas de beira de açude, marrom amarelada, meio oval e pesada como só essas pedras de beira de açude sabem ser. Até hoje eu não sei como eu, com apenas 7 anos de idade, consegui segurar aquela bigorna da natureza. 


   Olhei para meus dois primos que caminhavam inocentes à minha frente e selecionei meu alvo. O menorzinho deles. O mais escurinho. O magrelinho sem camisa e de calção vermelho da educação física. O vilão que havia tirado um fino em mim com uma pedra. E que agora iria ter o sustinho dele de volta.

Fiz carreira, com a pedra lisa erguida acima da cabeça com as duas mãos, e atirei-a gritando:

- ÓI O FINO!!!

Eu nunca esqueci o som que uma pedra faz nas costas de uma criança magra. 

   Foi uma pancada seca. Um “TUMP” abafado, como quando a gente dá uma tapa numa saca de ração, ou bate com um caderno de matéria num sofá de couro. Eu juro que eu queria apenas tirar um fino, mas meu talento natural para acertar o alvo fez com que a pedra atingisse precisamente no meio das costas de Fillipe. A expressão “Infiliz das Costa Oca”, que mainha tanto usava, nunca fez tanto sentido quanto naquele momento, quando ouvi o som da pedrada reverberando no espinhaço do meu primo.

   Ele caiu pronto. Desmilinguido. Uma das chinelas dele saiu do pé e jazeu emborcada meio metro para trás. A camisa que levava no ombro caiu desolada ao lado do corpo inerte. A poeira cobriu. Lu olhou pra mim com cara de quem diz “o que porra foi essa?” E eu fiquei ali, parado a dois metros do meu primo abatido, com a sensação de que havia feito uma grande besteira.

   Lu curvou-se para falar com Fillipe, que ainda jazia no chão da estrada deserta do caminho do cacimbão. De joelhos no chão, ele cochichou alguma coisa no ouvido de Fillipe, e na minha cabeça, imaginei que ele estava perguntando se o irmão estava bem. Ele então pegou o braço de Fillipe e o ergueu. Quando o soltou, o braço caiu mole como um cordão velho no chão. Ele repetiu o gesto outra vez e o resultado foi o mesmo. Feito isso, Lu olhou para mim com um olhar sombrio que me fez gelar o estômago. E então, com uma voz fúnebre e rouca, ele deu o veredicto:

- Kakito... Você matou ele. 

   O universo se espremeu ao meu redor. Fiquei momentaneamente surdo e minhas pernas quase desistiram de me sustentar em pé. Eu havia matado uma pessoa. De uma pedrada. Cocei a cabeça, sem saber o que dizer em minha defesa. “Foi ele quem começou” não parecia um bom argumento. Diante daquela sinuca em que me encontrava, não vi outra solução a não ser a mais óbvias em casos como esse: Corri. Corri como um louco mato adentro, me rasgando nas juremas, um criminoso em fuga. Deixei para trás meu futuro, minha família, meus bonecos do “Comandos em Ação”, e meus dois primos que gargalhavam maldosamente enquanto me olhavam sumir em meio à vegetação.

   Fiquei foragido por 1 semana. Na verdade, foi apenas pouco mais de uma hora, mas o peso de uma assassinato nas costas, mais a ideia de que a qualquer momento o som da sirene das viaturas de polícia quebrariam a calmaria do lugar e os homens fardados surgiriam no meio do mato para me prender fazia com que cada minuto durasse uma eternidade.Passei todo aquele tempo calculando minhas chances de me safar daquela encrenca e, pra minha agonia, as probabilidades eram bem pequenas. E se eu fosse mesmo preso, eu tava lascado, porque Lu era a única testemunha do crime e é óbvio que ele iria depor contra mim. Não tinha jeito. Minha vida nunca mais seria a mesma depois daquela pedrada.

   A tarde foi caindo e eu resolvi me entregar porque tinha medo do escuro. Além disso, “jajá painho vai embora e se eu num tiver lá ele vai me deixar”. Esse era o raciocínio lógico de Kakito, o assassino. Mais preocupado em não levar uma bronca do pai do que de responder por homicídio qualificado.

   Caminhei lentamente em direção à Casa Grande, ensaiando minha versão dos fatos. Treinei duas ou três caras de arrependimento e decidi usar a original mesmo. Era suficiente. Ao chegar lá, me deparo com meus dois primos, meu pai e meus tios, todos sorridentes, já sabendo de toda a história, desde o fino que levei de uma pedrada, até o momento em que meus primos, cochichando na cena do crime, combinaram de fingir que um deles estava morto.

   Fiquei aliviado. Então eu não era mais um assassino. Dormiria no conforto do meu quarto naquela noite e não numa cela suja com dois motoqueiros de bandana e um rato de estimação. Minha ficha estava novamente limpa, minha suíte no inferno estava cancelada e eu poderia assistir Família Dinossauro sem ter que subornar um carcereiro para isso. Mas eu teria pro resto da vida a experiência de saber como é matar uma pessoa. E a sensação não é nada agradável. Lu e Fillipe vieram até mim sorrindo e passaram a mão na minha cabeça dizendo “era brincadeira, rapaz, você acreditou?”. Meus tios gargalhavam dizendo “Ô, caba frouxo” e Carol ficou perguntando sem parar onde eu tinha me escondido.

   Sorri mais uma vez com cara de “Ô, besteira, teve nem graça”, para todos eles. E juro a vocês, meus amigos, que a sorte dos meus dois primos naquele momento, foi não ter nenhuma outra pedra lisa ao meu alcance. 

Mas eles ainda estão nos meus planos. Quem sabe um dia, né?

Quem sabe um dia...

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